Amor às causas perdidas

  • Maiana Pereira

Por vezes escrevendo eu me pergunto o quanto minhas palavras chegam ao leitor que sofre de maneira prolongada por alguma questão. Parece fácil pedir que se olhe a vida por outra perspectiva. Mas, para quem vive há muito tempo questões que nublam a tomada de decisões isso não é tão simples. Eu peço que vocês se perguntem sobre a vida que desejam viver, sobre coisas que querem alcançar,  para experimentar o diferente. E o que faz aquele que não se sente pronto para fazer essas perguntas? O que faz aquele que não se sente confortável em experimentar o que o traz medo? E vou além: o que faz aquele cuja visão do mundo é tão ampla que não acha justo assumir posturas tão individualistas frente a um mundo em que tantos sofrem? Hoje dirijo minha palavra a vocês.

Imagem: Reprodução. Quadro “Visions of Don Quixote” de Octavio Ocampo, 1989.

Eu já ouvi de muitas pessoas que elas sentem que deveriam desistir de algo por acharem “não é para mim”. Como se existissem pessoas que conseguem e merecem coisas boas e outras que devem se contentar sempre com o que tem. O amor “não é para mim”, o trabalho dos sonhos “não é para mim”, a meta que mais desejaria alcançar é uma meta impossível, “não é para mim”. Eu mentiria absurdamente se negasse que é mais fácil para algumas pessoas alcançar certas coisas. Não existe meritocracia, não existe chegar a algum lugar sozinho. Somos todos frutos de contextos. A questão é: podemos afetar os contextos da mesma maneira que eles nos afetam. Não na mesma intensidade, mas temos essa habilidade de modificar também o nosso entorno. E essa possibilidade de escolher como afetar faz toda diferença.

Dom Quixote de La Mancha conta a história de um homem que de tanto ler romances de cavalaria acreditou que fazia parte deles. Corre atrás de seu amor imaginário, inventa um mundo em que gostaria de viver, briga com moinhos de ventos em suas aventuras impossíveis. Virou sinônimo de quem busca o sonho a qualquer custo. Também sinônimo de loucura. Ver na ausência da coisa observada não tornavam os dragões menos verdadeiros para Dom Quixote. Em sua vida, ainda que a pessoa que olha de fora discordasse completamente do que ele vivenciava, ele de alguma forma os vivenciava.

Assim são teus medos. Quem vê de fora pode não entender o porquê eles te afetam tanto. Porque atitudes consideradas “simples” aos olhos da maioria podem ser sentidas como impossíveis para aqueles que tem medo. Não existem problemas bobos e nem medos bobos. Você consegue entender de onde eles vêm? 

Você sabe que precisa enfrentar o medo, mas não está pronto e foge disso. Mas fugir ensina a fugir. É preciso enfrentar para aprender a enfrentar. Experimentar na verdade envolve uma série de passos. Qual o menor passo possível que você consegue dar? Você seria capaz de dar metade desse menor passo? Tente acreditar pelo menos durante os segundos em que dá esse passo, não mais que isso. Você consegue isso? Consegue acreditar alguns minutos mais, apenas o suficiente para mais um passo? Consegue dar esse passo ao lado de alguém em quem confia?

Para alguns todas minhas falas podem soar individualistas. O mundo é louco, mas você está lúcido. O mundo é difícil eu sei. Falo em afetar o contexto, mas que diferença faz minha fala a favor da Palestina em meio a uma guerra tão distante? E, no entanto, eu falo. E espero que minha voz ecoe de alguma forma junto a outras vozes na esperança de que façamos diferença. Sabendo que essa diferença irá até certo ponto. Não o suficiente para salvar vidas que gostaríamos de salvar. Não em curto prazo. Adicione ao mundo aquecimento global, ameaças de grupos extremistas políticos, problemas locais, problemas estaduais, problemas dentro da minha família, contas, dívidas, prazos, a sensação de sufocamento entre o fim do mundo e o fim do mês. É utopia esperar que tudo isso acabe? Como ser feliz assim? Eu não vou responder e para ser sincera ainda procuro também minha resposta. 

A pergunta que você se deve fazer é: qual o sentido de evitar a felicidade porque outros sofrem? Você que é capaz de afetar mais o teu entorno do estas que sofrem “mais”, não estaria sendo mais egoísta não aproveitando a oportunidade que outros não tem? Não usando a tua voz que é ouvida em nome daqueles silenciados? É um pensamento difícil e não falo ele para te gerar culpa. Essa culpa também não vai te ajudar em nada. Meu ponto é: se estes pensamentos não te movem e não te levam a lugar algum você não é muito diferente do nosso Dom Quixote. Não por acreditar em causas impossíveis, mas por não entrar em contato com o que está ao redor de verdade. Ficar preso ao pensamento do que deveria ser feito te afasta de fazer algo. Esquivar-se é como ser o herói que ao perseguir coisas ausentes evita as presentes que podem ser boas (se nos deixarmos experimentar). É preocupação real ou é fuga?

Não sei se acredito em causas perdidas. Talvez a Dom Quixote seja eu. Se eu posso fazer algo não tem nada perdido. Se perdi, eu já tive. Se tentei, houve força. Se foi difícil, houve coragem. Prefiro riscar “causa perdida”, não acho que seja o teu caso e nem o meu. Por amor.


Maiana Pereira

Psicóloga, baiana, feminista e palestrinha que ama dar um pitaco. Falo sobre os cotovelos sobre tudo que me move. Sou daquelas que a vida tem uma trilha sonora própria. Quero saber mais, ouvir mais, ver mais, ler mais, ver como cada contexto se relaciona. Vem comigo?
Conheça também meu site https://www.maianapereirapsi.com/

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