“O cuidado deve ser em liberdade, não há aprendizado sem as relações do mundo”
Em entrevista ao programa Inclusão em Foco, Vinícius Lemes da Silva Reis, coordenador de Saúde Mental de Vitória da Conquista, falou sobre os 23 anos do Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (CAPS AD III), serviço que funciona 24 horas na cidade. Na conversa, ele destacou a evolução do serviço – que nasceu como Centro de Estudos e Atenção às Dependências Químicas (CEAD) em 1999 –, o combate ao estigma, a importância das oficinas de cidadania e os desafios para os próximos anos.
Abaixo a entrevista concedida ao programa INCLUSÃO EM FOCO.
Inclusão em Foco: Vinícius, um dos pilares do CAPS é o combate ao estigma relacionado ao uso de substâncias psicoativas. Que estratégias têm sido eficazes nesse enfrentamento?
Vinícius Reis: O município compreendeu desde muito cedo que essa é uma questão de política pública de saúde, não de segurança pública. O balanço desses 23 anos mostra que fomos refinando o trabalho e entendendo que ele se dá principalmente em rede, não só na saúde, mas com a rede como um todo. O combate ao estigma começa internamente, capacitando a equipe. Também atuamos nas oficinas de cidadania, quebramos estigmas junto aos próprios usuários e fazemos matriciamento com as unidades de saúde. Realizamos campanhas, trabalho de redução de danos e, quando acionados, vamos às escolas. Além disso, temos datas como o Dia da Luta Antimanicomial (18 de maio) e o Festival do Ben-estar e Saúde em outubro, onde vamos para a rua explicar à população o que é o CAPS AD e qual o nosso trabalho.
IF: Durante a comemoração de 23 anos, houve oficinas sobre cidadania. Quais temas foram debatidos e como elas fortalecem a autonomia dos usuários?
VR: Essas oficinas são um trabalho contínuo, que fazemos nas assembleias de usuários e familiares para fortalecer o protagonismo dessa população. Trabalhamos temas como controle social, cuidados em liberdade, conhecimento da rede de apoio, deveres e direitos, e benefícios socioassistenciais. A ideia é entender que o trabalho com o uso problemático de substâncias não se dá apenas na esfera clínica ou ambulatorial. Ele se dá na perspectiva de que essa pessoa precisa retomar a inserção na vida enquanto cidadã. É a possibilidade de retomar a cidadania que vai fortalecê-la para lidar com o uso problemático.
IF: As sugestões dos participantes foram pauta da assembleia. Quais foram as principais demandas e como o CAPS pretende respondê-las?
VR: Temos uma comunicação muito próxima entre a coordenação e as gerências do CAPS. Tudo que é colocado nas assembleias é trazido para a gestão. Na última, as demandas foram relacionadas à estrutura física, manutenção predial, aumento da equipe e modificações nos processos de trabalho. Nós vamos até eles, comunicamos o que é possível naquele momento, o que não é, o que está em nosso alcance e estabelecemos prazos. Eles fazem parte da formulação da política, seja nos processos de trabalho, seja nas questões estruturais.
IF: O serviço atua com foco na reabilitação em liberdade. Na prática, o que isso significa para os usuários e suas famílias?
VR: O cuidado em liberdade e a reabilitação psicossocial significam que não se trata apenas de um tratamento clínico ou ambulatorial. Para que a pessoa tenha uma melhora significativa, ela precisa de uma reinserção social. Precisamos trabalhar a vida dela no sentido da relação com o outro, com a família, com o emprego, com a possibilidade de se capacitar. Tudo isso só pode ser feito a partir do cuidado em liberdade. Não se pensa em “prender” ou asilar a pessoa para que ela se recupere e volte ao mundo. O lidar com o mundo se dá justamente nas relações cotidianas. É um trabalho comunitário, com as unidades de saúde, com o CRAS, com as políticas de geração de renda. A gente não tem que retirar a pessoa do seu contexto; tem que fortalecê-la e criar novas estratégias de cuidado para ela lidar no dia a dia.
IF: A equipe do CAPS é formada por profissionais de várias áreas. Como essa diversidade contribui para um atendimento mais humanizado e eficaz?
VR: Temos uma equipe multiprofissional: psiquiatras, clínicos, psicólogos, pedagogos, educadores físicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, agentes sociais, educadores sociais, administrativos, farmacêuticos, instrutor de artes, nutricionista. Trabalhamos na ideia de que, por mais que tenham categorias diferentes, todos são técnicos em saúde mental, capacitados para lidar com as questões do uso abusivo. Todos são aptos a fazer um acolhimento e uma escuta qualificada. Essa diversificação é crucial, especialmente por sermos um CAPS III, que funciona 24 horas. Temos a modalidade de acolhimento intensivo, que não é internação, mas um processo de desintoxicação por cerca de 14 dias para pessoas com uso mais problemático. Para manter esse funcionamento, contamos com equipe de enfermagem plantonista, médico de sobreaviso e uma rede de retaguarda com SAMU e prontos-socorros.
IF: Por fim, quais são os principais desafios e metas do CAPS AD III para os próximos anos?
VR: Temos alguns desafios contínuos. Um é a ampliação da equipe, pois a população da cidade cresce e precisamos pensar na oferta de cuidado. Outro é a educação permanente em saúde, com capacitações anuais – em 2025, o tema é “manejo de crises”. Também participamos do projeto nacional “Nós na Rede”, do Ministério da Saúde. Percebemos também uma mudança no perfil dos usuários, com um aumento significativo da população em situação de rua, o que exige capacitações específicas. Por fim, um desafio central é tornar mais sólido o cuidado em rede. A complexidade da política pública exige um trabalho integrado com outras secretarias. Precisamos desburocratizar a comunicação e fazer com que todos compreendam que o usuário do CAPS AD também é um usuário da rede toda. É nisso que lutamos para avançar.
Ouça a entrevista na íntegra:







