Garantir o acompanhamento psicoterapêutico a crianças e adolescentes vítimas de violência pode ser a porta de saída dos traumas

Dar continuidade a uma psicoterapia que ajude as vítimas a lidarem com as situações de violência sofrida e abusos que jamais deveriam acontecer é também um desafio e uma garantia a se buscar
  • Por Fábio Agra
  • Atualizado: 13/10/2023, 10:58h

O Complexo de Escuta Protegida, entregue em 2021 pelo Governo Municipal, tem sido um importante passo para dar respostas à violência sofrida por crianças e adolescentes, principalmente a que envolve abuso sexual.

Referência à implantação da Lei Federal 13.431/2017, em que estabelece um atendimento acolhedor e humanizado para as vítimas de violência, através da Escuta Protegida, Vitória da Conquista conseguiu ser pioneira na sistematização do atendimento a crianças e adolescentes para que elas não sejam revitimizadas, ou seja, que não precisem relatar novamente para vários profissionais a violência sofrida.

Esse é um instrumento importante justamente para ajudar a lidar com os possíveis traumas. Por isso é importante se pensar na necessidade de acompanhamento psicoterapêutico, após todo o fluxo e protocolo de atendimento, como no caso da Escuta Protegida, também ser uma garantia.

Esta é uma questão que foi levantada, inclusive, pelo superintendente de advocacy da Childhood Brasil, Itamar Gonçalves, em entrevista à Mega Rádio durante o lançamento na semana passada de três documentos que balizam a atuação dos profissionais que atuam no Complexo de Escuta Protegida. Os documentos são resultado de uma cooperação técnica com a Childhood Brasil e a Unicef.

“Hoje a gente celebra aqui um momento muito especial que é o cumprimento de uma etapa. Para isso não significa que o município deixou de ter desafios. Ele continua tendo desafios. Por exemplo, o monitoramento e acompanhamento de casos de violência, porque a gente sabe que não é aquela porta de entrada que vai resolver. Ela (a vítima) precisa também ser monitorada ao longo da sua vida, ao longo do seu desenvolvimento para ver se realmente fez sentido, se de fato foi adequada a intervenção que se fez junto a essa criança, junto a sua família e assim por diante”.

Os três documentos intitulados de Protocolo, Fluxo e Diagnóstico, lançados na semana passada em cerimônia envolvendo o Governo Municipal, a Unicef e a Childhood Brasil, servem para nortear a atuação dos profissionais durante todo o percurso de atendimento às crianças e adolescentes vítimas de violência ou testemunhas de violência e também de suas famílias, desde o acolhimento às vítimas até o processo de investigação dos crimes.


Itamar Gonçalves (ao centro) ao lado de Benedito Rodrigues (à esquerda), consultor da Unicef, e Michael Farias (à direita), secretário de Desenvolvimento Social, durante o lançamento dos documentos que balizam os trabalhos do Complexo de Escuta Protegida. Foto: Fábio Agra.

Os casos de violência infantil, principalmente os de abuso sexual, deixam traumas que podem durar por toda a vida. A psicóloga clínica e social e especialista em atenção psicossocial no SUS e SUAS, Cleiliany Araújo, diz que muitas vezes as pessoas só percebem que sofreram determinado tipo de abuso já na fase adulta e carregam, assim, suas dores sem entendê-las muito bem ou sem conseguir enfrentá-las. Por isso a importância de que um acompanhamento seja feito o quanto antes.

“É importante ressaltar que quanto mais cedo se inicia o processo terapêutico melhor a criança irá desenvolver recursos para lidar com as implicações da violência vivenciada. Todavia, muitas pessoas só se dão conta ou só conseguem relatar a violência vivenciada na fase adulta. Nessas situações as vidas dessas pessoas podem ser impactadas em vários sentidos, que irão variar de pessoa para pessoa”.

O desenvolvimento de ansiedade, crises depressivas, estresse pós-traumático, afastamento do convívio social ou automutilação são alguns dos sintomas demonstrados por quem sofreu violência ainda na infância. “A psicoterapia pode facilitar o contato com seus processos internos mais profundos, a compreensão e ressignificação da experiência vivida. E, para que o acompanhamento psicoterapêutico funcione é fundamental que a criança receba o acolhimento necessário e que a psicoterapia seja conduzida de forma cuidadosa para que ela não seja revitimizada e que sentimentos como culpa e vergonha não sejam potencializados”, afirma Cleiliany Araújo.

A Mega Rádio entrou em contato com a Prefeitura de Vitória da Conquista, através da secretaria de Comunicação, para saber se haveria um acompanhamento dessas crianças e adolescentes que sofreram violência, após todo o ciclo da Escuta Protegida ser concluído, desde o acolhimento à fase de inquérito. Mas até o fechamento dessa matéria ainda não tivemos uma resposta sobre a nossa solicitação. Assim que tivermos um retorno, acrescentaremos à matéria.

Mas no aspecto de não ocorrer a revitimização, a implementação do Complexo de Escuta Protegida já é um avanço para toda a sociedade. Vitória da Conquista é uma das poucas cidades do país a implementar esse sistema de acolhimento com escuta especializada e depoimento especial com entrevistador ou entrevistadora forense. Apenas cerca de 20 municípios começaram a desenvolver um projeto parecido no país, de acordo com Itamar Gonçalves, da Childhood Brasil. Essa política é algo que deve nortear os trabalhos também em outros países. Durante o lançamento dos três documentos na semana passada, inclusive, foi apresentado um vídeo enviado pelo governo de São Tomé e Príncipe em que este se mostrava disposto a fazer uma cooperação técnica para que a Escuta Protegida fosse implantada naquele país.

“O vídeo apresentou também São Tomé e Príncipe querendo implementar essa metodologia no seu país. A gente tem exemplo do Chile, do Equador, que são países que também vieram conhecer essas experiências que estão acontecendo no Brasil para modificar sua lei e, inclusive, tentando dar essa metodologia que a gente desenvolveu nessa parceria junto com o município”, afirma Itamar Gonçalves.

O Complexo de Escuta Protegida envolve diversos profissionais que formam a rede de proteção, desde a área da saúde até o poder judiciário. O acolhimento adequado às vítimas de violência, como a de abuso sexual, ainda na infância e adolescência é o primeiro caminho para que os traumas impactem o menos possível a vida futura dessas pessoas. Dar continuidade a uma psicoterapia que ajude as vítimas a lidarem com as situações de violência sofrida e abusos que jamais deveriam acontecer é também um desafio e uma garantia a se buscar.

Somente em Vitória da Conquista, de acordo com documento produzido pela Prefeitura do município durante a campanha do Dia Nacional de Combate ao Abuso e às Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, em 18 de maio deste ano, desde a implantação do Complexo de Escuta Protegida até aquela data foram realizados 140 depoimentos especiais de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violências. São no mínimo 140 vítimas diretas e mais suas famílias que podem carregar algum tipo de trauma e precisaram de acompanhamento somente durante o último ano.

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